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Viagens por dentro dos dias

Blog em torno de literatura, arte, viagens, etc.

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14.10.24

In illo tempore. Naquele tempo a vida não era simpática para os pobres. Sobretudo, se viviam numa qualquer aldeia do interior do país, onde a luz não chegava e água só a do poço ou de uma fonte pública. Aldina casou com dezasseis anos e teve um filho aos dezassete. Lavava roupa para fora, para as senhoras da cidade. O marido, um rapaz de vinte anos, sem aptidão para lavouras preferiu ir para a capital tentar a sorte numa oficina de serralheiro, que ia mais a seu jeito. Pouco habituado ao trânsito caótico de uma cidade em crescimento, quase sem regras de trânsito, ao fim de seis meses de cidade morreu atropelado ao atravessar a rua, colhido por um carro que ultrapassou um eléctrico. Aldina vestiu-se de luto e assim ficou toda a vida. Nunca mais casou. Preocupou-se apenas em criar o filho que, na idade em que a mãe se casou, também ele decidiu rumar à capital e dali para qualquer outro lado, que nunca revelou. Aldina ficou sozinha, definitivamente. Lavava roupa e rezava pelo filho e pelo marido. Morreu sozinha, aos quarenta anos, de uma septicémia, sem nunca ter visto mais que os vinte metros de quintal do casebre onde morava, o caminho para a capela da aldeia, e os trinta passos para casa de uma vizinha com a qual passava as tardes de domingo a tricotar malha e a viver a vida que a vizinha já vivera, quando fora criada de um conde, em Lisboa. Uma vida.

© António Garcia Barreto in "Pescar à Linha", contos.


19.09.23

Duas mulheres, de idade avançada, conversavam durante uma viagem de metro. Uma delas queixava-se da saúde.

— Não me ando a sentir nada bem nos últimos dias.

— Isso não é nada — retrucou a outra, a sorrir. — Quando morreres tudo passa. 

A queixosa olhou para a amiga como se a visse pela primeira vez na vida, levou a mão ao peito e caiu no chão, desamparada.

— Matou-a! — acusou alguém que ouvira o diálogo e se ajoelhara para socorrer a inditosa mulher.

(Microcontos, © António Garcia Barreto)


08.07.23

Dois amigos, um poeta e o outro bombeiro, reencontraram-se ao fim de algum tempo. Sentaram-se na esplanada de um café rememorando passados. Até que o poeta perguntou com um leve sorriso trocista:

— O que fazer quando tudo arde?

— Apagar o fogo — respondeu o bombeiro com uma certeza inabalável.

(António Garcia Barreto, Microcontos)

Microconto

O inexplicável


25.02.23

IMG_2344 – pequena.jpeg

Esmeraldinha estava sentada no sofá, a pintar as unhas dos pés de cor verde. No final, os dedos dos pés pareciam um relvado. Inexplicavelmente, começaram a nascer pequenos malmequeres amarelos e brancos, e florinhas azuis, nas unhas. O seu chihuahua deu um salto para o sofá, cheirou-lhe os pés, alçou a pata traseira e marcou território com uma esguichadela de urina.

— Malvado! — gritou Esmeraldinha. 

E não é que o cão sorriu.

(agb)

Microconto

Cabide


14.02.23

Enfurecido com a lide que não lhe agradava, o touro Bolota investiu contra a barreira com uma força desmedida. Um dos cornos trespassou as tábuas. Do outro lado, um novilheiro apanhou a capa do chão e pendurou-a na ponta do corno do touro.

— Muito obrigado, Bolota.

(agb)

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