29.01.22
A noite iluminou-se com a luz de mil archotes. Era dia sendo noite. Uma chuva de estrelas desabou sobre a minha cabeça evocando uma cascata de fogo-de-artifício. Não foi alegria o que senti, mas um repentino e inexplicável aperto no peito, um sufoco de adeus-vida. Algo de muito grave estava a acontecer e eu não o podia impedir, nem fugir. A cidade já sofrera, séculos atrás, um abalo devastador, que a reduzira a cinzas e a pó. Nos meus ouvidos repercutiam-se os gritos aflitivos dos sobreviventes. O receio de que a tragédia se estivesse a re- petir roubou-me o discernimento. Senti-me perdido num mundo em derrocada. minutos depois, compreendi que estava apenas a acordar de um sonho agitado após uma noite de insónia. Olhei para o teto das águas-furtadas com um olho fechado e o outro aberto, tirando a prova dos nove à realidade. O estuque estava no seu lugar e o mundo também. Senti um forte desejo de tomar uma chávena de café, aromá- tico e fumegante. Era urgente acordar. Sou muito lento a reagir pela manhã. Preciso de algum tempo de adaptação antes de poder desafiar o sol e explorar a vida.
António Garcia Barreto in "O Discreto Cavalheiro", romance, Prémio Literário Orlando Gonçalves 2021, patrocinado pela CM de Amadora. Em fase de produção. Âncora Editora.